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Um Ensaio Sobre a Cegueira em João 9

No capítulo 9 do Evangelho de João, encontramos uma narrativa rica e dramática sobre a cura de um cego de nascença por Jesus, um evento que transcende o simples milagre físico. Este texto explora questões de fé, cegueira espiritual, e desafia a religiosidade superficial dos fariseus. Através desta história, o evangelho revela a missão de Jesus de iluminar aqueles que estão nas trevas e, paradoxalmente, de cegar aqueles que acreditam ver com total clareza.

Foto de Marcus Dall Col na Unsplash

1. Contexto do Capítulo: A Festa dos Tabernáculos

O cenário de João 9 é a Festa dos Tabernáculos, uma celebração judaica de sete dias que também simbolizava a luz e a proteção de Deus. No capítulo anterior, Jesus já havia causado alvoroço ao perdoar a mulher adúltera e ao se declarar como “a luz do mundo”. Ao fazer essa afirmação em plena festa, Jesus desafia as autoridades religiosas e, em João 9, reforça essa declaração curando o cego e trazendo luz à sua escuridão literal e espiritual.

2. A Pergunta dos Discípulos e a Teologia da Retribuição

A narrativa começa quando os discípulos, ao verem o cego de nascença, perguntam a Jesus: “Quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?” Essa pergunta revela a teologia da retribuição, uma crença comum entre os judeus da época que associava sofrimento e deficiência ao pecado. Jesus, porém, quebra essa lógica ao afirmar que nem o homem nem seus pais pecaram, mas que a cegueira serviu para “que se manifestem nele as obras de Deus” (Jo 9:3).

Essa resposta de Jesus vai contra a interpretação tradicional da época e também desafia uma visão que ainda é comum em muitas comunidades religiosas. Ela nos lembra que nem sempre o sofrimento é resultado de um erro pessoal. Assim como no livro de Jó, onde o sofrimento não é sinônimo de pecado, Jesus subverte essa noção punitiva, focando em trazer luz e restauração, não em culpar.

3. O Milagre: O Barro, a Saliva e a Fonte de Siloé

Para realizar o milagre, Jesus faz algo curioso: cospe no chão, faz barro com a saliva e o aplica nos olhos do cego, mandando-o lavar-se na piscina de Siloé. Essa ação tem uma forte carga simbólica. O ato de Jesus usar o barro remete à criação humana em Gênesis, onde Deus forma o homem do pó da terra. Ao recriar a visão do cego, Jesus simboliza uma nova criação, dando-lhe olhos que nunca haviam enxergado.

A escolha da piscina de Siloé também carrega um simbolismo. O nome “Siloé” significa “enviado”, refletindo o próprio papel de Jesus como o enviado de Deus para iluminar o mundo. O cego, ao obedecer à ordem de lavar-se, participa ativamente do processo de cura, demonstrando sua fé.

4. A Reação dos Fariseus: A Religião Cega

Após a cura, o ex-cego é levado aos fariseus, e o relato rapidamente se torna uma batalha entre a nova visão do homem e a cegueira espiritual das autoridades religiosas. Ao saberem que a cura ocorreu em um sábado, os fariseus prontamente condenam Jesus por quebrar a lei sabática, ignorando o milagre e focando nas regras.

Os fariseus se dividem: enquanto alguns consideram Jesus um pecador, outros se perguntam como alguém que faz tais sinais poderia ser um pecador. Ao longo do capítulo, vemos que os fariseus, representantes da “luz religiosa” e da lei, tornam-se cada vez mais cegos diante dos sinais evidentes. Eles questionam repetidamente o ex-cego e seus pais, buscando desmentir o milagre em vez de acolher o testemunho do homem curado.

Esse conflito traz uma crítica clara à religião que valoriza mais as normas e os rituais do que o bem-estar e a libertação do ser humano. Ao longo do diálogo, os fariseus demonstram uma cegueira obstinada, mostrando que aqueles que mais deveriam ver a verdade de Deus estavam, de fato, afundando na escuridão de suas próprias regras e julgamentos.

5. A Jornada Espiritual do Cego: Da Luz Física à Luz Espiritual

A jornada do cego ao longo da história é um belo exemplo de transformação espiritual. No início, ele refere-se a Jesus apenas como “o homem chamado Jesus” (Jo 9:11). Mais tarde, à medida que os fariseus pressionam e desafiam sua fé, ele o reconhece como “profeta” (Jo 9:17). E ao final, diante do próprio Jesus, ele o chama de “Senhor” e o adora (Jo 9:38).

Essa progressão de títulos reflete o crescimento da fé e da compreensão do ex-cego, que passa a ver não apenas fisicamente, mas também espiritualmente. Em contraste, os fariseus, que acreditam possuir pleno entendimento, se afundam na ignorância, revelando que a verdadeira cegueira é espiritual.

6. “Vim a este mundo para instaurar um processo”: A Missão de Jesus

No final do capítulo, Jesus declara: “Vim a este mundo para instaurar um processo, para que os cegos vejam, e os que veem fiquem cegos” (Jo 9:39). Esse é o ponto-chave da narrativa. Jesus vem para confrontar aqueles que, em sua autossuficiência e religiosidade rígida, acreditam ver todas as coisas com clareza. Ele oferece luz àqueles que estão nas trevas, enquanto os “iluminados” se tornam cegos por sua própria arrogância e orgulho.

Jesus revela que a fé verdadeira não é dogmática nem autoritária. Em vez de se manifestar por meio do poder ou da política, ela se expressa pelo amor e pela compaixão. Os fariseus, ao preferirem manter suas tradições inabaláveis, perdem a oportunidade de serem transformados e iluminados pela presença do próprio Deus.

7. A Relevância do Texto para Hoje: A Cegueira Religiosa

O capítulo 9 de João nos faz refletir sobre as próprias práticas religiosas e a tendência de julgar os outros de forma rígida e dogmática. Quantas vezes, em nossa vida religiosa, não acabamos agindo como os fariseus, preocupando-nos mais com rituais e regras do que com o amor e o cuidado ao próximo?

Hoje, muitos grupos religiosos colocam ênfase em demonstrações de poder e em normas restritas, distanciando-se dos ensinamentos centrais de Jesus. A verdadeira fé, no entanto, não busca o controle ou o julgamento; ela busca transformar vidas pela luz da compaixão e da empatia.

Esse texto nos chama a uma reflexão pessoal e coletiva. Precisamos nos perguntar se estamos realmente enxergando as necessidades ao nosso redor ou se, como os fariseus, estamos presos a uma “cegueira espiritual” que nos impede de ver o próximo e de experimentar a luz que Jesus oferece.

Conclusão: “Eu Era Cego e Agora Vejo”

A história do cego de nascença é uma metáfora poderosa para nossa própria jornada de fé. Assim como ele, somos convidados a sair das trevas para a luz e a enxergar Jesus não apenas como um personagem histórico, mas como o Senhor de nossas vidas. O ex-cego resume sua transformação com uma frase simples e marcante: “Eu era cego e agora vejo”.

Que possamos também enxergar além da religiosidade, buscando uma fé viva e autêntica que transforma, ilumina e acolhe. Que nosso maior desejo seja, não apenas ver, mas ver com os olhos da compaixão, acolhendo o outro e reconhecendo nossa própria necessidade de cura espiritual.

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