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Um Encontro à beira do Poço: Jesus e a Samaritana João 4

Texto bíblico: João 4.1-30

O capítulo 4 do Evangelho de João começa com os líderes religiosos preocupados com o crescente número de seguidores de Jesus. Sabendo disso, Jesus decide voltar para a Galileia, a região onde deu início ao seu ministério e onde fez seus primeiros discípulos.

Diz o texto que ele “tinha de atravessar a Samaria”. Este percurso, apesar de ser o mais curto, cerca de 120km, era evitado pelos judeus devido à presença dos samaritanos. Os judeus preferiam o caminho pelo pelo deserto da Judeia e vale do Jordão, total de 140km.

Ao chegar a uma aldeia próxima à cidade de Sicar, Jesus pára junto ao Poço de Jacó. Jacó, também conhecido como Israel, foi o patriarca do antigo Reino do Norte, cuja capital no passado foi Samaria. Aqui, vale explorar o pano de fundo histórico dessa animosidade entre judeus e samaritanos.

Contexto Histórico: Judeus e Samaritanos

Após a morte dos reis Davi e Salomão, o reino de Israel foi dividido em dois: o Reino do Norte, mais próspero, formado por dez tribos, e o Reino do Sul, conhecido como Judá, composto pelas tribos de Judá e Benjamim. O Reino do Norte, com seus rios perenes e solo fértil, atraiu a atenção das grandes potências da época, resultando em sucessivas invasões que eventualmente o destruíram. Com a invasão, os israelitas que habitavam essa região começaram a se misturar com povos estrangeiros, adotando novos costumes e abandonando sua identidade religiosa e cultural, como povo exclusivo de Javé.

O profeta Oseias denuncia essa corrupção e mistura, anunciando ao mesmo tempo a misericórdia de Deus. O simbolismo presente no livro de Oseias serve de pano de fundo teológico para o diálogo de João 4.

O Reino de Judá, por sua vez, preservou as tradições religiosas e a pureza étnica, mantendo o Templo de Jerusalém como o principal local de adoração a Javé. Os judeus, por isso, se consideravam os guardiões do verdadeiro Israel, devido à sua fidelidade às tradições sagradas.

Diálogo entre Jesus e a Samaritana comentado

Com esse contexto em mente, podemos compreender melhor o impacto do diálogo entre Jesus, um judeu, e uma mulher samaritana à beira do poço de Jacó. Vamos ao comentário do diálogo.

Chega uma mulher da Samaria para tira água, Jesus lhe diz:
– Dá-me de beber.

João 4.7

Era meio-dia, o sol estava forte, e Jesus, cansado e provavelmente com fome e sede, aguardava que seus discípulos retornassem com os alimentos da aldeia. O horário inusitado e o fato de uma mulher se aproximar para tirar água naquele momento são indicativos de algo importante. Normalmente, as mulheres buscavam água nas primeiras horas da manhã ou ao entardecer, o que sugere que essa mulher talvez estivesse evitando a presença de outras pessoas, possivelmente por causa de sua condição social ou moral, que descobriremos mais adiante.

Ao chegar ao poço, a mulher se surpreende ao encontrar um homem. Mas sua surpresa é ainda maior quando esse homem judeu lhe dirige a palavra. Ela responde:

Como é que tu, sendo judeu, pedes de beber a uma mulher samaritana?

João 4.9

Jesus, então, inicia uma conversa sobre temas espirituais, algo típico dos diálogos no Evangelho de João. No capítulo anterior, vemos Jesus conversando com o fariseu Nicodemos sobre a necessidade de nascer de novo. Da mesma forma, aqui Ele começa a falar sobre a água viva.

Se conhecesses o dom de Deus, e quem é que te pede de beber, tu pedirias a ele e ele te daria água viva.

João 4.10

Literalmente, “água viva” significa água corrente, como a de mananciais, o que é muito diferente da água de um poço. A mulher, sabendo que o único recurso ali era o poço, questiona Jesus:

– Senhor, não tens balde e o poço é profundo; de onde tiras água viva? Acaso és maior que nosso pai Jacó, que nos deixou o poço do qual bebiam ele, seus filhos e rebanhos?

João 4.11

A mulher, ainda presa à interpretação literal, não compreende que Jesus fala de algo espiritual. Isso reflete uma estrutura comum nos diálogos de João, onde os interlocutores de Jesus inicialmente interpretam suas palavras em termos materiais. Como Nicodemos, que não entendeu o conceito de nascer de novo, a mulher também luta para captar o significado espiritual da “água viva”. Jesus continua:

Aquele que beber esta água voltará a ter sede; quem beber a água que eu lhe darei jamais terá sede, pois a água que lhe darei se transformará dentro dele em manancial que brota dando vida eterna.

João 4.13-14

Mesmo diante dessas palavras, a mulher ainda responde de maneira literal, com um tom que pode ser entendido como irônico ou até desesperado, dado seu sofrimento:

– Senhor, dá-me dessa água para que eu não tenha sede e não tenha de vir aqui para tirá-la.

João 4.15

Neste momento, a mulher começa a deixar cair suas defesas, ainda que de forma inconsciente. Sua resposta, que pode parecer uma mistura de ironia e esperança, revela um desejo profundo de alívio para o seu sofrimento diário. É quando Jesus toca na questão central de sua vida:

– Vai, chama teu marido e volta aqui.
A mulher lhe respondeu:
-Não tenho marido.
Diz-lhe Jesus:
Tens razão em dizer que não tens marido, pois tiveste cinco homens, e tampouco o de agora é teu marido. Nisso disseste a verdade.

João 4.16-18

Aqui, a verdade é revelada. Agora entendemos por que essa mulher estava no poço ao meio-dia, sozinha, e porque ela queria sim beber uma água que desse a ela o poder de não ter que voltar ao poço diariamente.

Ela muito provavelmente queria evitar o julgamento das outras mulheres da aldeia, já que sua situação conjugal a colocava à margem da sociedade. O que a mulher tentava esconder, Jesus já sabia desde o início. Ele estava ali, naquele momento, esperando por ela, com o objetivo de resgatar sua dignidade e dar-lhe uma nova vida.

Surpreendida pela revelação de sua verdade pessoal, a mulher reconhece que está diante de alguém especial:

— Senhor, vejo que és profeta.

João 4:19

No entanto, ainda sem se confrontar diretamente com a mudança que sua vida exige, ela tenta mudar de assunto, focando em uma discussão religiosa:

Nossos pais prestavam culto neste monte; vós ao contrário, dizeis que é em Jerusalém que se deve prestar culto.

João 4.20

Essa mudança brusca de assunto revela a tentativa da mulher de fugir do confronto pessoal, mas Jesus, com paciência e compaixão, a conduz gentilmente para a verdade espiritual. Ele faz um convite a ela para que creia nele e anuncia que está chegando a hora em que o local de culto não será mais o mais importante. O verdadeiro culto ao Pai será feito em espírito e em verdade.

Mas chega a hor, e já chegou, em que os que prestam culto autêntico prestarão culto ao Pai em espírito e de verdade. Tal é o culto que o Pai procura.
Deus é Espírito, e os que lhe prestam culto haverão de fazê-lo em espírito e de verdade.

João 4.23-24

Após esse anúncio de Jesus, a mulher, ainda tentando se apoiar nas promessas que já conhecia, menciona a chegada do Messias, o qual explicaria todas as coisas:

Sei que virá o Messias (isto é o Cristo). Quando ele vier, nos explicará tudo.

João 4.25

Nesse momento, Jesus aproveita para se revelar:

Sou eu, aquele que fala contigo.

João 4.26

Diante dessa revelação impressionante, a mulher deixa seu balde de água e corre até a aldeia para contar a todos o que havia acontecido e quem ela havia encontrado. Sua pergunta ressoa em suas palavras: Será ele o Messias? (João 4:29). Por causa do testemunho dessa mulher, muitos samaritanos creram em Jesus como o Messias.

Aplicação Pessoal

Aplicação Pessoal

Acredito que, ao lermos as histórias de Jesus nos evangelhos, devemos nos colocar como seus interlocutores. Creio que, na maioria das vezes, essa era a intenção dos autores. Cada evangelho foi escrito com uma comunidade de crentes em mente, e ao nos aproximarmos desses textos, precisamos reconhecer que também somos seus destinatários.

Por isso, ao ler esse diálogo de Jesus com a mulher samaritana, coloco-me no lugar dela. Imagino-me tendo um encontro com Jesus. Como seria começar uma conversa com um completo desconhecido, talvez um estrangeiro, em um contexto tão comum como um pedido de água, que, ao final, acaba tocando profundamente a alma?

No decorrer do diálogo, vejo como a mulher, repetidamente, tenta desviar o foco para assuntos marginais, enquanto Jesus insiste em tratar de questões espirituais profundas. Não posso julgá-la. Quantas vezes, eu também, evito o confronto com a verdade sobre mim mesmo? Quantas vezes uso subterfúgios para evitar encarar a imagem refletida de quem realmente sou?

Penso sobre o que uso para me esconder no meu cotidiano. Talvez eu me esconda atrás de uma imagem idealizada, de projetos e realizações, ou mesmo do meu conhecimento e da minha religiosidade. Escondo-me atrás das minhas múltiplas personas de pai, marido, profissional.

No entanto, essa atitude de fugir da verdade é o que nos impede de viver uma vida plenamente transformada, profunda e saudável. Quantos de nós estamos sofrendo porque não temos a coragem de enfrentar nossos traumas, nossos medos, nossas inseguranças e nossos erros? Somos como a mulher samaritana, que evita o confronto com sua realidade até que Jesus gentilmente a expõe.

Em grupos de apoio, como os Alcoólicos Anônimos, o primeiro passo é sempre sair da negação, reconhecendo que há um problema e que, sozinho, é impossível resolvê-lo. Aqui, Jesus oferece essa saída à mulher à beira do poço: a “água viva” que transforma e renova. Essa mesma oferta é feita a mim e a você, mas para beber dessa água espiritual, é preciso, primeiro, encarar a verdade de quem realmente somos. Não há outro caminho.

Como Jesus disse, o Pai busca adoradores que o adorem em espírito e em verdade. Ele não está preocupado com formalidades religiosas ou lugares de culto. O que importa para Deus é a transformação do ser humano, é o nosso coração ser moldado para se parecer com o de seu Filho, Jesus.

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