Introdução
Seguindo uma abordagem metodológica moderada, podemos afirmar que a Bíblia Hebraica (nosso Antigo Testamento) foi escrita entre aproximadamente 1200 e 125 a.C., em geral em Hebraico, mas com breves passagens em Aramaico.
A Bíblia foi transmitida desde a Antiguidade até o presente por comunidades judaicas religiosamente observantes. Foi passada por cópias manuscritas até que em 1480 d.C, após a invenção da imprensa[1], também se tornou acessível em cópias impressas.
Os Cristãos desde tempos antigos também se serviram da Bíblia Hebraica, porém, quase que exclusivamente por meio de traduções (destacando-se a Septuaginta e a Vulgata) até o Renascimento e a Reforma (séculos XV e XVI). A partir daí, principalmente nos séculos recentes (a partir do século XIX) estudiosos protestantes e católicos se dedicam cada vez mais ao estudo do original da Bíblia Hebraica.
A Bíblia Hebraica e os textos do Antigo Oriente Próximo
É preciso ter em mente que muito tempo antes dos escritos bíblicos, os povos do antigo Oriente Próximo desenvolveram extensas literaturas, que ao contrário da Bíblia Hebraica, desapareceram em grande parte com o declínio político desta região.
Podemos destacar principalmente três blocos de literatura antiga: Egípcia, Mesopotâmica e Hitita. Encontramos escritos nacional-religiosos egípcios, escritos na língua egípcia, de aproximadamente 2750 a 350 a.C.. As escritas mesopotâmicas nas línguas suméria, acádica, aramaica e persa datam de 2750 a 380 a.C., a literatura hitita data de 1800 a 1200 a.C.. O interessante é que todos estes textos antigos, salvo algumas citações em escritos gregos e iranianos mais tardios, são perdidos e só são recuperados a partir de 1800 d.C com o trabalho arqueológico minucioso.
Como vimos o mesmo não acontece com a Bíblia Hebraica. Vale destacar que estes textos eram grandes compêndios literários, abarcando diversas formas e tipos literários que encontramos similares na Bíblia Hebraica, isto é, tanto a Bíblia Hebraica como os textos do Antigo Oriente Próximo compartilham ampla herança cultural, e é importante sabermos também que Israel era uma força histórica relativamente pequena e insignificante naquele território, e não influenciou perceptivelmente seus vizinhos, pelo contrário observamos uma grande dependência literária de textos bíblicos de textos do Antigo Oriente Próximo.
Literaturas Judaica e Cristã dependentes da Bíblia Hebraica
Apócrifos e Pseudepígrafos
Surgem entre 200 a.C. e 100 d.C.. Embora amplamente utilizados por judeus neste período não se tornaram parte do cânon judaico aceito como Escritura. Estas obras eram populares entre os judeus de fala grega da dispersão, e por isso eram venerados pelos primeiros cristãos e se tornaram parte do cânon dos cristãos católicos conforme confirmado pelo Concílio de Trento em 1546. Isto significa que eram estes os escritos que Jesus e seus seguidores tinham acesso no primeiro século.
Na Reforma os protestantes recusaram os apócrifos como havia sido feito com a Bíblia Hebraica, mas a maioria destes cristãos consideravam estes textos importantes para a piedade e instrução à medida que não contradissessem os ensinamentos bíblicos.
Os pseudepígrafos não formavam parte dos cânones judeus ou católicos da Escrituras, no entanto, foram admitidos em diversas combinações entre determinados organismos cristãos orientais, tais como as igrejas coptas, etiópicas e sírias.
Os apócrifos sobreviveram em sua maioria na língua grega, mas para alguns casos foram encontrados originais semíticos (língua hebraica ou aramaica). Os pseudepígrafos se conservaram mais nas línguas das comunidades cristãs ortodoxas (línguas etíopes, siríaca e eslavônica).
Manuscritos do Mar Morto
Os manuscritos do Mar Morto foram escritos entre 150 a.C. e 70 d.C.. Estes manuscritos estiveram perdidos até 1947 quando foi encontrado por um pastor beduíno numa caverna na região de Qumrã.
Nestes manuscritos estão contidos textos bíblicos e não bíblicos. Foi a descoberta de textos bíblicos mais antigos do que qualquer outro manuscrito conservado (só não possuem o livro de Ester). Entre os textos não bíblicos se encontram Apócrifos e Pseudepígrafos já conhecidos e também vários outros textos inéditos, isto é, que só tivemos conhecimento a partir desta fonte.
Estes textos forma escritos por uma comunidade religiosa sectária judaica, provavelmente do grupo dos essênios. Foram conservados em vasos de argila e depositados no interior de cavernas nas proximidades do Mar Morto. Somente um punhado dos rolos existe em grandes partes, e alguns estão em exibição permanente no Museu de Israel. São cerca de 15 mil fragmentos que perfazem em torno de 900 documentos.
Talmude e Novo Testamento
Ambos, Novo Testamento e Talmude, são frutos da interpretação do mesmo texto sagrado (a Bíblia Hebraica), feito por grupos confessionais judeus, mas sob óticas diferentes.
A comunidade cristã primitiva era inicialmente um movimento judaico, e só se tornou uma entidade independente no final do primeiro século, sobrevivendo, juntamente com o judaísmo rabínico à queda de Jerusalém em 70 d.C.. Por isso, consideravam a Bíblia Hebraica, tanto no original quanto em sua versão grega como seu livro sagrado, e não precisaram de qualquer outra Escritura por muitas décadas, inclusive, eles apresentavam a Jesus como cumprimento das expectativas religiosas da Bíblia Hebraica.
À medida em que foram surgindo conflitos na Igreja sobre a natureza da fé e da identidade cristã no século II d.C., é que se tornou necessário asseverar que a Bíblia Hebraica era realmente escritura mas que, além disso, um núcleo de escritos cristãos primitivos (escritos entre 50 e 150 d.C.) constituía uma segunda divisão da Escritura, da mesma forma autorizada.
Desta forma surge a designação Antigo Testamento para a Bíblia Hebraica e Novo Testamento para a literatura sagrada cristã. Depois disso a Bíblia Hebraica em tradução grega ou latina, acrescida dos Apócrifos, foi associada ao Novo Testamento para formar a Bíblia dos cristãos católicos, os cristãos ortodoxos orientais[2] concordaram, mas incluíram livros adicionais dentre os Pseudepígrafos.
O Talmude, que significa estudo/instrução, é o extenso corpo da Lei Oral codificada que se desenvolveu de 250 a.C. a 550 d.C.. Foi sobre ela que as autoridades rabínicas moldaram definitivamente a estrutura do judaísmo depois da queda de Jerusalém em 70 d.C., eliminando as formas rivais do pensamento judaico[3].
O Talmude nada mais é do que um suplemento à Lei escrita (Gênesis a Deuteronômio) para a piedade judaica, é considerado a palavra viva continuadora de Moisés. São interpretações e reinterpretações orais que consistiam em deduzir do texto bíblico diretrizes exatas para o comportamento comum religioso e ritual judaico (Halakah, ou seja “caminhando, guiando a própria vida”).
Desde aproximadamente 150 a.C. grupos de interpretes identificados com os Fariseus desenvolveram estas leis orais que foram codificadas em 180 a.C. na Mishnah (ou seja, “repetição/estudo”), que prosseguiu juntamente com um comentário aramaico até 550 d.C conhecido como a Gemara (isto é, “complementando), formando assim o Talmude.
Além destas interpretações feitas sobre os textos bíblicos legais, há também um conjunto de escritos judaicos chamado Haggadah (isto é, “narração”) que consistia no aperfeiçoamento das narrativas e profecias bíblicas e serviam para fomentar a fé e esperança judaicas.
As reflexões da Haggadah foram incorporados ao Midrash (isto é, “exposição”) constando de numerosos comentários de textos bíblicos que foram escritos de 150 d.C. até 1300 d.C.
Podemos dizer que os Judeus não ampliaram a Bíblia Hebraica para incluir a Mishnah ou o Talmude completo pois o judaísmo rabínico não admitiu um novo revelador histórico da parte de Deus da maneira que fizeram os cristãos acerca de Jesus. Nem houve a necessidade de chamar a Bíblia Hebraica de Lei Antiga e da Mishnah e/ou Talmude de Lei Nova, mas ela ficou conhecida como Tanak devido ao seu conteúdo triplo: Lei (Torah), Profetas (Nevi’im) e Escritos (Kethuvim)
Bibliografia Utilizada:
Bibliografia Utilizada:
BARRERA, Julio Trebole. A Bíblia Hebraica e a Bíblia Cristã. Petrópolis: Vozes, 2000
GOTTWALD, Norman K. Introdução sócio-literária à Bíblia Hebraica. São Paulo: Paulinas, 1988
Anexo I: Cânon Judaico da Tanak
LEI (Torah) | 1 | Gênesis | |
2 | Êxodo | ||
3 | Levítico | ||
4 | Números | ||
5 | Deuteronômio | ||
PROFETAS (Nevi’im) | Primeiros Profetas | 6 | Josué |
7 | Juízes | ||
8 | 1 e 2 Reis | ||
9 | 1 e 2 Samuel | ||
Segundos Profetas | 10 | Isaías | |
11 | Jeremias | ||
12 | Ezequiel | ||
13 | Os Doze | ||
Oséias | |||
Joel | |||
Amós | |||
Obadias | |||
Jonas | |||
Miquéias | |||
Naum | |||
Habacuc | |||
Sofonias | |||
Ageu | |||
Zacarias | |||
Malaquias | |||
ESCRITOS (Kethuvim) | 14 | Salmos | |
15 | Jó | ||
16 | Provérbios | ||
17 | Rute | ||
18 | Cântico dos Cânticos | ||
19 | Eclesiastes | ||
20 | Lamentações | ||
21 | Ester | ||
22 | Daniel | ||
23 | Esdras-Neemias | ||
24 | 1 e 2 Crônicas |
Anexo II: Os Livros Canônicos
Cânon Católico Romano do AT | Cânon Católico Romano do AT | |||
1 | Gênesis | 1 | Gênesis | |
2 | Êxodo | 2 | Êxodo | |
3 | Levítico | 3 | Levítico | |
4 | Números | 4 | Números | |
5 | Deuteronômio | 5 | Deuteronômio | |
6 | Josué | 6 | Josué | |
7 | Juízes | 7 | Juízes | |
8 | Rute | 8 | Rute | |
9 | 1 Samuel | 9 | 1 Samuel | |
10 | 2 Samuel | 10 | 2 Samuel | |
11 | 1 Reis | 11 | 1 Reis | |
12 | 2 Reis | 12 | 2 Reis | |
13 | 1 Crônicas | 13 | 1 Crônicas | |
14 | 2 Crônicas | 14 | 2 Crônicas | |
15 | Esdras | 15 | Esdras | |
16 | Neemias | 16 | Neemias | |
17 | Tobias | Nos Apócrifos | ||
18 | Judite | Nos Apócrifos | ||
19 | Ester (Incluindo | 17 | Ester (Incluindo | |
acréscimos de Ester) | Nos Apócrifos | |||
20 | Jó | 18 | Jó | |
21 | Salmos | 19 | Salmos | |
22 | Provérbios | 20 | Provérbios | |
23 | Eclesiastes | 21 | Eclesiastes | |
24 | Cântico de Salomão | 22 | Cântico de Salomão | |
25 | Sabedoria de Salomão | Nos Apócrifos | ||
26 | Eclesiástico (Sabedoria de Ben Sirac) | Nos Apócrifos | ||
27 | Isaías | 23 | Isaías | |
28 | Jeremias | 24 | Jeremias | |
29 | Lamentações | 25 | Lamentações | |
30 | Baruc (Incluindo a Carta de Jeremias) | Nos Apócrifos | ||
31 | Ezequiel | 26 | Ezequiel | |
32 | Dainel (Incluindo | 27 | Dainel (Incluindo | |
Acréscimo a Daniel): | Nos Apócrifos | |||
A narrativa de Susana | ||||
O Cântico dos Jovens | ||||
A narrativa de Bel e o dragão | ||||
33 | Oséias | 28 | Oséias | |
34 | Joel | 29 | Joel | |
35 | Amós | 30 | Amós | |
36 | Obadias | 31 | Obadias | |
37 | Jonas | 32 | Jonas | |
38 | Miquéias | 33 | Miquéias | |
39 | Naum | 34 | Naum | |
40 | Habacuc | 35 | Habacuc | |
41 | Sofonias | 36 | Sofonias | |
42 | Ageu | 37 | Ageu | |
Cânon Católico Romano do AT (cont.) | Cânon Católico Romano do AT (cont.) | |||
43 | Zacarias | 38 | Zacarias | |
44 | Malaquias | 39 | Malaquias | |
45 | 1 Macabeus | Nos Apócrifos | ||
46 | 2 Macabeus | Nos Apócrifos |
Anexo III: Livros Judaicos entre os Pseudepígrafos de antes de 70 d.C.
- Vida de Adão e Eva (ou Apócrifos de Moisés)
- Carta de Aristeas
- 2 Baruc (siríaco)
- Apocalipse de Elias
- 1 Enoc (etiópico)
- 2 Enoc (eslavônico)
- Ascensão de Isaías
- Testamento de Jó
- Jubileus
- 3 Macabeus
- 4 Macabeus
- Testamento (ou Assunção) de Moisés
- Vida dos Profetas
- Oráculos Sibilinos
- Salmos de Salomão
Testamento dos Doze Patriarcas
[1] A Bíblia foi o primeiro livro impresso com a invenção de Gutemberg.
[2] O surgimento da divisão entre Igreja do Oriente (ou Ortodoxa) e Igreja do Ocidente (ou Católica) se deu em 1054 por questões doutrinárias e políticas. Para mais informações: http://www.solanoportela.net/artigos/cisma_igreja.htm
[3] Lembre-se de que o centro do judaísmo rabínico era a Sinagoga, e não o Templo. Este é um dos principais motivos deste pensamento judaico se tornar hegemônico após a destruição definitiva do Templo de Jerusalém.
Muito bom, quanto conteúdo, professor 😊
Obrigado amiga e irmã Iara! Vamos em frente aprendendo cada dia mais um pouquinho…